Gostaria de apontar que quando a palavra “lei” ocorre na Versão Autorizada (King James) do Novo Testamento devemos traçar uma distinção que possui dois aspectos. Primeiro, precisamos distinguir entre “a lei” e “lei” sem o artigo definido, do modo como é encontrada nos originais gregos. Se lermos a “New Translation” de J. N. Darby poderemos perceber facilmente isto, mesmo sem termos condições de entender o texto grego.
“A lei” é específica, e refere-se à lei de Moisés, enquanto “lei” é característica e coloca diante de nós um determinado princípio ou elemento da lei de Moisés, ou seja, “a lei” nos fala de Deus formulando e codificando Sua justas demandas exigidas do homem, e “lei” nos fala de Deus fundamentando Seu modo de agir para com o homem com base em como o homem corresponde àquilo que lhe foi revelado por Deus.
Além disso, precisamos também distinguir estes dois significados do uso da palavra em passagens como Romanos 8:2: “Porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte”. Aqui ela traz o mesmo sentido de quando falamos das leis do universo, ou mais especificamente da lei da gravidade, e indica a existência de algum tipo de força controladora que opera de modo uniforme sobre todos os que estão sob sua influência.
Tendo estas coisas em mente, vamos prosseguir fazendo algumas distinções de natureza prática. Adão foi colocado em responsabilidade sob “lei”, apesar de “a lei” não ter sido instituída senão 2500 anos mais tarde. Neste caso havia apenas uma proibição, mas sua atitude em relação àquela proibição regulava a atitude de Deus para com ele. Enquanto ele guardasse aquela lei, ele viveria; quando a transgredisse, morreria.
Como consequência de sua queda, Adão e sua posteridade ficaram sujeitos à terrível tirania da “lei do pecado e da morte”, da qual Romanos 8:2 fala. Todavia durante muitos séculos nenhuma lei adicional foi dada por Deus e portanto, aquilo que caracterizada a humanidade não era a transgressão da lei, mas a falta dela. Esta foi a grande característica da era antediluviana.
Tendo Israel sido chamado para fora do Egito, a lei foi dada a eles por intermédio de Moisés. A partir daí existia um povo que possuía a lei e, consequentemente, estava “sob a lei”, no que dizia respeito ao seu relacionamento com Deus. Todavia a lei de Moisés só provou o quanto eles estavam dominados pela “lei do pecado e da morte”.
Enquanto isso até a vinda de Cristo os gentios permaneciam abertamente dominados pela lei do pecado e da morte, apesar de bem independentes da lei quanto ao seu relacionamento com Deus.
Agora que Cristo veio, e tendo a redenção sido consumada e o Espírito dado, os crentes não estão sob “a lei”, e nem mesmo “debaixo da lei”, no que diz respeito ao seu relacionamento com Deus. Ao invés disso, eles estão “sob a graça” (Rm 6:14) e “a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus” os liberta da “lei do pecado e da morte”. Assim eles são mantidos “debaixo da lei de Cristo” ou “legitimamente sujeitos a Cristo” (1 Co 9:21), e capacitados a cumprir todas as justas demandas da lei (Rm 8:5) -- não no sentido de fazê-lo para obter ou manter uma posição diante de Deus, mas como fruto da graça que já os colocou nesta posição do mais rico favor.
Se estas coisas forem claramente enunciadas não teremos qualquer dificuldade em estabelecer vários pontos que foram levantados no “sermão da montanha” (Mt 5-7).
Seria o sermão da montanha lei? Esta é uma pergunta feita com frequência. Qual é a resposta?
Evidentemente não é a lei de Moisés, mas mesmo assim naqueles capítulos temos a voz daquele que deu a lei originalmente trazendo a passagem diante de nossos olhos. Alguém definiu tal situação com estas palavras: “Não [a apresentando] como um novo código, mas como uma nova edição do velho... esclarecendo Suas próprias intenções e descartando as perversões criadas pelos homens”. Isto está particularmente assinalado em Mateus 5:17-48. Ali o Senhor se apresenta como Aquele que não veio para destruir a lei, mas para cumpri-la, ou seja, apresentar a sua plenitude. Por isso são tão repetidas as palavras, “Vós ouvistes o que foi dito... Eu porém vos digo...”. Veja Mateus 5:20, 22, 26, 28, 32, 34, 39, 44 e 6:2, 5, 16, 25 e 29.
Mas se estes capítulos de Mateus não são “a lei”, seriam eles “lei”? Em outras palavras, será que o Senhor fundamentou Seu ensino ali com base na graça conhecida e recebida de antemão por seus discípulos, a qual já os teria deixado bem fundamentados em seu modo de se relacionarem com Deus, ou será que Ele as apresentou como instruções mais espirituais que, se guardadas, seriam elas próprias a base de tal relacionamento? Em suma, estariam elas fundamentadas no princípio do “faze isso, e viverás”, que é lei, ou “vive e faze isso”, que é graça?
Outras passagens podem nos ajudar aqui. Você deve se lembrar da maravilhosa afirmação feita em João 1:17. “Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”. Isto nos prepara para o que encontramos em Mateus 5:7. Uma clara linhagem de graça percorre aqueles capítulos. Pelo ensino do Senhor, no início de Seu ministério, Deus aparece aos discípulos em uma nova luz como “vosso Pai que está nos céus”. Fica muito claro que algo assim não traz qualquer indício de lei em sua concepção.
Mesmo assim precisamos nos lembrar de Gálatas 4:4-5, que nos diz que “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos”. Aqui somos confrontados com o evidente fato de que, apesar de o Senhor Jesus ter vindo ao mundo “cheio de graça”, Ele ainda veio “sob a lei”, muito embora Seu objetivo em vir fosse o de consumar a libertação dos Seus santos da lei e introduzi-los em uma posição na qual pudessem se regozijar na graça trazida por ele.
Permita-me propor uma pergunta: Quando foi que nosso bendito Senhor deixou de estar sob a lei? Ele veio a este mundo sob a lei; será que, por exemplo, ele deixou de estar sob ela quando saiu do anonimato em Nazaré para se lançar no ministério público? Ou quando teria sido? A resposta é que Ele deixou de estar sob a lei quando redimiu o Seu povo dela, MORRENDO na cruz sob a maldição da lei (Gl 3:13). Portanto o terreno sobre o qual Paulo estava “morto para a lei” era simplesmente este: “Estou crucificado com Cristo” (Gl 2:19-20).
Você deve também ter em mente a mudança apresentada no grande argumento de Hebreus 9 e 10. Vamos, portanto, considerar particularmente Hebreus 9:11-14 e Hebreus 10:1, 2, 9-17. Nada poderia ser mais claro do que uma tão grande e fundamental bênção de graça no que diz respeito à consciência purificada “obras mortas, para servirdes ao Deus vivo” (Hb 9:14), ou quando já não há “consciência de pecados”, como consequência de terem “sido purificados uma vez por todas” (Hb 10:2 - Almeida Atualizada). Isto só poderia ter sido conhecido e desfrutado DEPOIS da morte e ressurreição de Cristo.
O sermão da montanha é o registro feito por Mateus dos antigos ensinos do Filho de Deus vindo cheio de graça e verdade, mas ainda assim estando sob a lei. Como a redenção não havia ainda sido consumada, o sangue que purifica a consciência e coloca a alma na liberdade da graça ainda não tinha sido derramado. Não haveria uma total libertação da lei e de suas demandas enquanto Ele não morresse, e até aquele ponto todo o ministério de nosso Senhor tinha sido um ministério progressivo e de transição. Portanto, o sermão da montanha é “lei”, mas nele as nuvens pesadas do monte Sinai vão se dissolvendo e já podemos perceber o brilho do sol da graça aparecendo atrás delas. Com a morte e ressurreição de Jesus as nuvens deram lugar ao sol, que brilhou em todo o seu vigor.
Outra pergunta que costuma ser feita com frequência é: “A quem o sermão da montanha é dirigido?”. Ou, usando as palavras de outro, “Os mandamentos encontrados no sermão da montanha são a lei que Deus deu aos Seus filhos nesta dispensação, ou são a lei para o reino futuro?”.
Adotando a pergunta em sua segunda forma e dando uma resposta condizente, podemos dizer que não é nem uma coisa, nem outra, pois se fôssemos responder apenas para o modo como ela foi primeiro formulada, só poderíamos dizer que ela foi dirigida aos discípulos (veja Mateus 5:1, 2). Mais tarde alguns daqueles discípulos se tornariam apóstolos, e bem mais tarde, quando o Senhor tivesse morrido, ressuscitado e ascendido aos céus, aqueles discípulos se tornariam o núcleo da igreja da qual fala Mateus 16:18, e seriam definitivamente incorporados como tal pelo batismo do Espírito no dia de Pentecostes. Mas na ocasião em que o Senhor dirigiu a eles o sermão da montanha eles não ocupavam a posição da igreja, e nem o Senhor havia anunciado a intenção de edificar Sua Igreja. A primeira vez que ele tocaria no assunto seria só no capítulo 16 de Mateus.
É possível perceber um claro contraste entre Mateus, capítulos 5 ao 7, e João 14 ao 16. Os primeiros nos dão um conjunto do ensino do Senhor aos Seus discípulos no início de Seu ministério, enquanto os segundos apresentam seus ensinos aos mesmos discípulos no final. O contraste fica evidente. Os primeiros ensinos trata, em todo o seu teor, daquilo que os discípulos deviam ser para Deus, enquanto os últimos tratam do que a Divindade -- Pai, Filho e Espírito -- seriam para eles; e a obediência aos mandamentos do Senhor e ao desfrutar de Suas Palavras ficam claramente fundamentadas na revelação feita da nova posição dos crentes em relação ao Pai e sua relação com Cristo como ramos que desfrutam da vida e natureza da vinha.
Você deverá, em cuidado e oração, ponderar nestas duas passagens para ter uma devida compreensão do verdadeiro caráter do sermão apresentado no cenáculo e em outros lugares. Isso será de grande ajuda para uma correta compreensão do caráter do sermão da montanha. Não ficará difícil enxergar que “lei” é a característica principal do sermão da montanha quando comparado à graça, que é a principal característica do sermão do cenáculo -- sempre tendo em mente que a lei coloca diante de nós o que deveríamos ser para Deus, e a graça o que Deus é para nós.
Para analisar o sermão no cenáculo, leia João 13 e 17. Um dá o prefácio e estabelece as cenas do discurso, e o outro apresenta sua grande conclusão na oração de nosso Senhor que tem um caráter “sumo-sacerdotal”. É nestes dois capítulos que encontramos a perspectiva que o Senhor adotou ao falar. Ele estava a poucas horas da cruz, mas mesmo assim Ele falava no espírito do que havia depois dela, tratando-a como algo já consumado (veja João 13:3, 31, 32; João 17:1, 4, 11). É isto o que deve ser considerado em relação à maravilhosa natureza do discurso, e em relação ao fato de que ele falou ali de coisas que não falara no início de Seu ministério (veja João 16:4).
Resumindo: O sermão da montanha foi dirigido aos discípulos no caráter que eles tinham então, de um “remanescente” fiel ou “semente” no meio de Israel. Usando a linguagem na forma de parábola de João 10, eles eram “Suas ovelhas”, que reconheciam o Pastor quando Ele entrou pela última vez no aprisco judeu. O Pastor certamente já tinha a intenção de morrer para o aprisco judeu e assim abrir um caminho de escape para Suas ovelhas, mas este grande evento ainda não tinha acontecido.
Devo concluir, mas antes gostaria de mais uma vez insistir para que você pondere cuidadosamente no final de João 16:4, pois a pergunta que sempre fica em discussões assim é esta: “Será que os evangelhos sinóticos possuem um caráter de transição?”. O evangelho de João é bem distinto, como bem sabemos, e começa com a rejeição de Cristo logo de início (João 1:5, 10, 11); mas nos apresenta esta importante palavra do Senhor com a qual Ele imprime um caráter progressivo em Seu ministério. A este versículo podemos acrescentar João 14:25 e 26, e João 16:12 e 13, nos quais Ele prometeu a Seus discípulos um ensino que vai além de tudo o que encontramos nos Evangelhos. Estas promessas se cumpriram por meio do ensino do Espírito nas epístolas, quando os discípulos haviam alcançado a plenitude de sua condição como cristãos.
Que grande contraste vemos entre “estas coisas” terrenas do ensino do Senhor e “todas as coisas” do ensino do Consolador , então futuras. Cada um dos outros três evangelhos mostram um claro caráter de transição, e a transição do ponto de vista dispensacional é muito clara em Mateus. Em Mateus 12 Ele é definitivamente rejeitado pelos líderes, e a blasfêmia deles contra o Espírito Santo é o pecado sem perdão. Ali vemos também o fato de que Ele começou a trazer para Si mesmo, como o Cristo, o testemunho no meio de Israel. Ele tornou isto mais definido em Mateus 16:20. Ele denunciou a massa incrédula do povo e simbolicamente, no final do capítulo rompeu com todos os antigos vínculos que tinha com eles.
Em Mateus 13 Ele começou Sua parábola ensinando e indicando a nova maneira pela qual o reino dos céus seria estabelecido durante o período de Sua rejeição. O Antigo Testamento já havia falado o suficiente do reino prometido, no sentido de que ele deveria ter o seu centro de direção e autoridade nos céus, mas estes “mistérios do reino dos céus” (vers. 11) que são descortinados nas parábolas são coisas que haviam sido “coisas ocultas desde a fundação do mundo” (vers. 35). É certo que, junto com estas novas revelações com este novo significado conectado ao reino (vers. 11), vinha um novo método no modo de Deus trabalhar, isto é, não mais buscando fruto na vinha existente, mas semeando para produzir fruto (vers. 3-8); e um novo método de ensino, isto é, por meio de parábolas (vers. 10). Por isso o escriba instruído no reino dos céus tira de seu tesouro “coisas novas e velhas” (vers. 52).
Portanto, a primeira parábola do capítulo determina que a rejeição de Cristo como Messias traz uma mudança de dispensação e a introdução de um período no qual o modo de Deus provar o homem seria Ele próprio produzindo o fruto que Ele desejava. As últimas seis parábolas que falam das similaridades do reino, nos dão inicialmente o que o reino é quando visto exteriormente como um sistema pelos homens (vers. 24-43), e então o que ele é em sua condição interna, a qual só é conhecida pela fé (vers. 44-50). Assim, o reino dos céus é colocado diante de nós de duas maneiras: uma, na qual envolve toda a profissão que é feita de Cristo, e a outra que abarca apenas o que é real e vital em termos de fruto da obra de Deus.
Os últimos capítulos do evangelho nos dão outras semelhanças do reino dos céus, bem como o primeiro indício da edificação que o Senhor chama de “minha Igreja” em Mateus 16. Havendo terminado o período transicional coberto pelos evangelhos, e tendo sido a Igreja inaugurada em Atos 2, a verdade relacionada a ele acaba sendo totalmente desenvolvida nas epístolas.
Este é um breve estudo destes importantes assuntos, mas pode servir para despertar o interesse e aumentar, entre os leitores, o número daqueles “escribas” que são “instruídos no reino dos céus”.
F. B. Hole - (1874-1964)
http://www.stempublishing.com/authors/hole/Art/Kingdom_of_Heaven.html
Mario Persona é palestrante e consultor de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional (www.mariopersona.com.br). Não possui formação ou título eclesiástico e nem está ligado a alguma denominação religiosa, estando congregado desde 1981 somente ao Nome do Senhor Jesus. Esta mensagem originalmente não contém propaganda. Alguns sistemas de envio de email ou RSS costumam adicionar mensagens publicitárias que podem não expressar a opinião do autor.)