https://youtu.be/V2BGj6FzY5U
Um livro que trata bem do assunto da retomada do antisemitismo é "The Road to Holocaust" de Hal Lindsay (embora não concorde com o autor em outras questões). O livro mostra como, ao longo da história, justificaram a perseguição dos judeus usando uma interpretação equivocada da Bíblia. O livro explica também a "Teologia do Domínio", muito em voga hoje, porém nem sempre chamada assim.
Para entender em poucas palavras, a Bíblia fala de dois povos: Israel e Igreja. O primeiro, escolhido por Deus no Antigo Testamento (não por seus atributos mas, muito pelo contrário, pela graça e soberania de Deus), recebeu promessas para sua época e para o futuro. É disso que fala boa parte do Antigo Testamento e profetas. As promessas eram sempre terrenas, de fartura, domínio dos povos e coisas assim.
Já o segundo povo (Igreja = conjunto dos que crêem em Cristo) não recebeu qualquer promessa terrena, mas todas celestiais, e foi formado tanto por judeus como por gentios, ambos convertidos a Cristo (judeus normalmente é o termo para o que restou de Israel por ocasião do Novo Testamento e hoje, principalmente descendentes das tribos de Judá e Benjamim). Esse povo (Igreja) jamais recebeu promessas de fartura, domínio ou lugar de destaque aqui. Suas esperanças sempre foram celestiais.
Basta acompanhar a história da cristandade -- faço uma distinção entre cristianismo e cristandade, o primeiro é o original, a segunda é a cópia -- para ver que esta tentou se arvorar substituta de Israel no mundo, beneficiária, portanto, de todas as promessas do Antigo Testamento, que incluíam poder político e religioso no mundo, abundância de riquezas e saúde perfeita. Sob esta ótica, já no princípio da história da cristandade quem se declarasse judeu só podia ser um usurpador, já que Deus supostamente prometera o domínio do mundo ao Seu povo, interpretado pela cristandade como sendo a "Igreja", que alguns até hoje acreditam ser a substituta de Israel no mundo.
O próprio Martinho Lutero era influenciado por essas idéias e é preciso compreender que este era o pensamento comum e oficial em sua época, tanto no meio político como cultural e religioso. Ele escreveu um panfleto em 1542 que dizia, em suma, o que devia ser feito com os judeus:
Incendiar suas sinagogas e escolas, derrubar suas casas, confiscar seus livros de oração, proibir os rabinos de ensinar sob pena de serem mortos, abolir o direito de ir e vir nas estradas, despojá-los de toda prata e ouro e obrigar que trabalhem com o suor de seu rosto (ou seja, não em atividades comerciais) para ganhar o sustento. (O texto completo, em inglês, no link):
A moderna Teologia do Domínio prega a cristianização do mundo como prerrogativa para Cristo voltar e reinar. Em alguns círculos políticos dos EUA, os fins justificam os meios, portanto não existiria nada de errado em se envolver em guerras se isto for para expandir o domínio da fé cristã, um discurso que não difere muito dos radicais islâmicos em seu empenho por eliminar os infiéis. Gary North é um dos que estão embarcados nessas idéias, bem como boa parte dos políticos norte-americanos ditos cristãos que querem fazer a sociedade de amoldar na marra aos princípios do cristianismo. É evidente que a influência cristã foi benéfica em muitos aspectos em nossa sociedade, mas tornar isso compulsório é misturar as coisas. No Brasil já temos alguma influência desse tipo de pensamento, como inclusão do nome de Deus nas cédulas, lobby católico ou evangélico e coisas do tipo.
Os mais recentes adeptos da Teologia do Domínio, embora a maioria nem saiba o que está fazendo, são os neocristãos adeptos da teologia da prosperidade. A adoção de trechos isolados do Antigo Testamento, originalmente dirigidos aos israelitas na Terra Prometida, leva muitos a acreditarem que ser rico e próspero faz parte das promessas de Deus para os cristãos. Obviamente basta ligar a TV para ver a quantas andam essas crenças. Mas quem ligar a Bíblia verá trechos que descrevem a vida simples de Cristo e dos discípulos, como Paulo que dizia "aprendi a contentar-me com o que tenho" (Fp 4:11).
A idéia de que Deus ordena aos cristãos que acumulem riquezas é a mesma postura que justificou a glória secular do romanismo com toda sua sede por poder secular, riquezas e possessão material nos últimos dois mil anos. Se o Templo de Salomão era todo revestido de ouro por dentro, as catedrais cristãs deviam ser também. Se as vestes dos sacerdotes deviam ser ricas em adornos de ouro e pedras, idem para os dignatários cristãos. Esse foi o raciocínio que sempre predominou.
Se Salomão, Davi, Abraão etc. eram ricos eu também devo ser. Israelitas? Judeus? Oras, Deus está falando para mim, não para eles -- foi o raciocínio que perdurou na cristandade por séculos e é o raciocínio que está sendo veladamente resgatado hoje nos cultos evangélicos de prosperidade justamente em um momento em que o catolicismo romano tinha se maquiado de despojado numa opção intelectualizada pelos pobres e pela pobreza.
David Chilton, um dos propagadores da Teologia do Domínio declarou: "Não sou eu quem está trazendo uma porção de novas idéias. Sabem o que eu fiz? Voltei para os pais da Igreja e li Santo Atanásio. Li Santo Agostinho e vi o que ele tinha a dizer sobre a marca da besta". Em seus escritos é possível encontrar pérolas como "O Israel étnico foi excomungado por sua apostasia e jamais voltará a ser o Reino de Deus." "O objetivo cristão para o mundo é a desenvolvimento universal de repúblicas bíblicas teocratas".
O livro "The Road to Holocaust" explica o que aconteceu com a fé cristã reformada, principalmente nos EUA, até chegar ao estado atual: "À medida que começaram a enriquecer, começando pelos próprios pastores e pregadores, houve necessidade de se adaptar a doutrina para explicar que toda aquela riqueza era a prosperidade prometida no Antigo Testamento. Dai até dizer que os cristãos devem arrumar o mundo para esperar a vinda de Cristo foi um passo." Na minha opinião, o anti-semitismo irá recrudescer e amparado por essas mesmas idéias de domínio cristão que prevaleceram por séculos de domínio do papado, só que agora numa vertente neo-evangélica de um vale-tudo pela prosperidade.