https://youtu.be/c9TwxxH7qNI
É bem antiga a dúvida se o cristão deveria tirar os calçados quando entra na presença de Deus em oração ou adoração. Essa doutrina tem até nome nos meios naturalistas e espiritualistas — "descalcismo" —, e foi copiada de religiões orientais por algumas ordens monásticas católicas e também por seitas protestantes. A alegação de que ela seria baseada em passagens bíblicas só pode vir de quem não entende a posição de privilégio em que o cristão foi colocado na presença de Deus, a quem Jesus revelou que agora pode chamar de "Pai", um privilégio que nem os israelitas tiveram no Antigo Testamento.
Portanto as passagens normalmente usadas como argumento para o "descalcismo" só podem vir de quem ainda não entendeu em sua totalidade a nova posição de privilégio em que foi colocado pela fé em Cristo, nada têm a ver com cristianismo já que se referem ao homem em sua carne tentando se aproximar de Deus. A adoração cristã não é na carne ou por meio de coisas e atitudes materiais, mas em espírito e em verdade, como o próprio Senhor antecipou à mulher samaritana, ainda preocupada com um lugar e formas terrenas de adoração:
"Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade." (Jo 4:19;24).
A doutrina do "descalcismo" tenta fundamentar essa crença na maneira como Moisés se apresentou a Deus, quando recebeu a ordem: "E disse: Não te chegues para cá; tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa." (Êx 3:5). A mesma ordem foi dada a Josué na presença do Senhor: "Então disse o príncipe do exército do Senhor a Josué: Descalça os sapatos de teus pés, porque o lugar em que estás é santo. E fez Josué assim." (Js 5:15). Encontramos Davi descalço como sinal de luto em 1 Samuel 15:30: "E seguiu Davi pela encosta do monte das Oliveiras, subindo e chorando, e com a cabeça coberta; e caminhava com os pés descalços".
Vemos também o profeta Isaías atendendo a uma ordem do Senhor: "Vai, solta o cilício de teus lombos, e descalça os sapatos dos teus pés. E ele assim o fez, indo nu e descalço... Isaías andou três anos nu e descalço, por sinal e prodígio sobre o Egito e sobre a Etiópia" (Is 20:2-3). O profeta Miqueias também prometeu caminhar, não só descalço, mas igualmente nu como expressão de seu lamento: "Por causa disso chorarei e lamentarei; andarei descalço e nu. Uivarei como um chacal e gemerei como um filhote de coruja." (Mq 1:8 NVI). Espero que os cristãos que adotam essa ideia não cheguem a tal extremo.
Antes de minha conversão a Cristo fui enganado por filosofias e doutrinas orientais, que me faziam concentrar meu foco e atenção em coisas materiais e perecíveis, como o corpo e o alimento. Apesar de todo aquele blábláblá espiritualista, a forma exterior de tentar expressar um suposto espiritualismo interior era cheia de restrições alimentares, práticas físicas, objetos sagrados e mantras audíveis. Por isso sempre que vejo alguém querer justificar algo usando como exemplo as religiões orientais logo percebo que provavelmente essa pessoa nunca tenha conhecido a graça de Deus e a posição elevadíssima onde o cristão é colocado: na própria presença de Deus em Cristo. Um texto que extraí de um site espiritualista tenta "provar" que o descalcismo é bom valendo-se de exemplos de adoradores de demônios (coloquei negrito nas palavras que são muito usadas pelo esoterismo):
"Embora os cristãos ocidentais contemporâneos se tenham esquecido de assimilar o descalcismo espiritual de qualidade, outros grupos religiosos, tanto do Oriente como do Ocidente, não se esqueceram. Muitos espiritualistas modernos compreendem a unidade entre o eu e o resto da Criação, ao tocar a Terra com os pés descalços. É costume (obrigatório, de fato) tirar os sapatos antes de entrar numa mesquita. Os sapatos também são removidos antes de entrar em templos hindus. Até mesmo os neo-paganistas e adeptos da Nova Era e iogues encontram nos pés descalços, um instrumento ideal para a comunhão com a Mãe Terra. Irônica, embora não muito surpreendentemente, andar descalço foi em grande parte um atributo cristão, nos primeiros anos da fé. Portanto, foi com grande tristeza que os seguidores do Caminho trocaram esta chave secreta para a infiltração espiritual nas religiões estranhas e estrangeiras por sapatos."
Na Bíblia o significado de pés descalços é de indignidade, pobreza e humilhação. Basta ver os versículos que citei do luto de Davi e da lamentação dos profetas que por esta razão descalçavam seus pés. Era também costume tirar os calçados dos prisioneiros, e os servos só podiam entrar na presença de seus senhores com os pés descalços. A passagem a seguir nos fala de como foram tomadas providências para restaurar a dignidade de alguns do povo de Deus que haviam sido presos e humilhados por seus próprios irmãos:
"E os homens que foram apontados por seus nomes se levantaram, e tomaram os cativos, e vestiram do despojo a todos os que dentre eles estavam nus; e vestiram-nos, e calçaram-nos, e deram-lhes de comer e de beber, e os ungiram, e a todos os que estavam fracos levaram sobre jumentos, e conduziram-nos a Jericó, à cidade das palmeiras, a seus irmãos." (2 Cr 28:15). Quando Deus relembra todos os privilégios que havia dado a Jerusalém, dentre eles menciona: "E te vesti com roupas bordadas, e te calcei com pele de texugo, e te cingi com linho fino, e te cobri de seda." (Ez 16:10).
Não acredito que seja o papel do cristão aproximar-se de Deus em adoração com um sentimento de luto, indignidade e vergonha, principalmente por ter a consciência de todos os seus pecados perdoados e de ter sido feito digno de entrar na presença de Deus graças à obra consumada de Cristo. Além disso, o cristão entende que seu lugar de adoração não é físico, como era para o israelita no Tabernáculo no deserto e no Templo em Jerusalém. Um cristão pode adorar a Deus reunido com seus irmãos em uma casa, garagem ou a céu aberto, e isso não torna sua adoração menor e menos digna que a de um judeu no Templo de Jerusalém cercado de ouro e pedras preciosas. Tendo acesso ao lugar que para o judeu era além do véu, o lugar de adoração do cristão não é físico, mas na própria presença de Deus.
Por isso também não procede a ideia de que congregarmos descalços evita levarmos sujeira do mundo para um suposto "lugar de adoração", porque esse lugar para o cristão não é mais físico como era para o israelita. O lugar de adoração do cristão é figurativamente representado pelo lugar onde o Senhor celebrou a primeira ceia com os discípulos — "um grande cenáculo mobilado" (Lc 2:12) — , onde estavam os discípulos por ocasião da formação da Igreja — "E, entrando, subiram ao cenáculo" (At 1:13) — e onde Paulo e os irmãos celebraram a ceia em Atos 12:8: "Havia muitas lâmpadas no cenáculo onde estávamos reunidos".
O cenáculo era um andar elevado, acima do nível do chão do mundo, e representava uma separação moral deste mundo, que é o lugar que cabe à Igreja, ao contrário do Tabernáculo e do Templo, onde a adoração acontecia no térreo. Além disso, não faria sentido um cristão tirar os calçados supostamente para não levar para o lugar de adoração a sujeira do mundo se o próprio lugar físico em que os cristãos adoram também tem poeira no piso. E mais ainda quando pensamos em irmãos que congregam em casas ou salões com piso de terra batida.
"Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa, retenhamos firmes a confissão da nossa esperança; porque fiel é o que prometeu." (Hb 10:19-23).
A mesma carta aos Hebreus é um alerta aos judeus convertidos que queriam manter um pé no judaísmo e na adoração terrena e outro no cristianismo com sua adoração celestial. Depois de lembrar que "Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente" o autor mostra que a forma de aproximar-se de Deus não é a mesma de ontem e chama de "doutrinas estranhas" qualquer coisa que tentasse levar aqueles cristãos a se apegarem às velhas formas de adoração:
"Não vos deixeis levar em redor por doutrinas várias e estranhas, porque bom é que o coração se fortifique com graça, e não com alimentos que de nada aproveitaram aos que a eles se entregaram. Temos um altar, de que não têm direito de comer os que servem ao tabernáculo. Porque os corpos dos animais, cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta. Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério. Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura. Portanto, ofereçamos sempre por ele a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome." (Hb 13:9-15).
O alerta contra aqueles que queriam introduzir elementos físicos na comunhão e adoração cristãs é dado em diversas passagens da doutrina dos apóstolos, como esta contra os que insistiam em uma circuncisão física sem entender a que é do coração. E lembre-se de que a circuncisão era um mandamento da Lei dada a Moisés (Lv 12:3) e até mesmo anterior à própria Lei (Gn 17:1):
"Todos os que querem mostrar boa aparência na carne, esses vos obrigam a circuncidar-vos... Porque não é judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. Mas é judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus. " (Gl 6:12; Rm 2:28-29).
Se você ainda não estiver convencido de que não faz qualquer sentido um cristão querer tirar os calçados como Moisés, Josué e alguns profetas fizeram no Antigo Testamento, acredito que este comentário de W. T. P. Wolston sobre a parábola do filho pródigo de Lucas 15 possa ajudar. Ali temos muito clara a nova posição em que é colocado aquele que foi totalmente perdoado pelo Pai e em que posição de dignidade ele é agora colocado para aproximar-se de Deus.
"'Trazei depressa a melhor roupa', diz o Pai aos servos. E esta é a minha função, quero dizer, a obra do evangelista que é falar a você de Cristo; procurar apresentar aos seus olhos os atrativos que são dele, para mostrar que você não precisa fazer nada, mas Cristo já fez tudo por você. O próprio Cristo é 'a melhor roupa'. Ali está a 'melhor roupa' para o pior pecador. 'Ponde-lhe... alparcas nos pés' também. A Lei dizia: 'Tire suas sandálias', mas a graça diz, 'Calce seus sapatos', isto é, 'Eu lhe proverei a vestimenta apropriada para circular nas cortes superiores'. A Lei diz, 'Tire seus calçados, você não é digno', mas a graça diz, 'Eu farei você digno'.
E então vem a alegria, o gozo dos céus, e oh!, quem seria tão tolo ao ponto de desprezar isso, e arriscar tudo o que ensina o capítulo 16 que vem a seguir? Por que você não vai a Jesus, escuta de sua boca que tudo foi perdoado (e esse 'tudo' como você mesmo sabe é muita coisa no seu caso), e desfruta do sabor da alegria do céu? 'E começaram a alegrar-se' E nunca depois ouvimos dizer que eles tenham deixado de se alegrar, pois é uma festa sem fim. Começamos aqui, mas ela se segue mais e mais através das incontáveis eras da eternidade". — W. T. P. Wolston em "Terra, Céus e Inferno"
Mario Persona é palestrante e consultor de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional (www.mariopersona.com.br). Não possui formação ou título eclesiástico e nem está ligado a alguma denominação religiosa, estando congregado desde 1981 somente ao Nome do Senhor Jesus. Esta mensagem originalmente não contém propaganda. Alguns sistemas de envio de email ou RSS costumam adicionar mensagens publicitárias que podem não expressar a opinião do autor.)