https://youtu.be/B_1lRq4kohc
Você perguntou o que significaria a expressão "amontoar brasas de fogo sobre a sua cabeça" que aparece no capítulo 12 da Epístola aos Romanos. A passagem é esta: "Abençoai aos que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis... A ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas honestas, perante todos os homens. Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens. Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor. Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem." (Rm 12:14-21).
Durante muito tempo eu achei que "amontoar brasas de fogo" sobre a cabeça de quem me fez mal tinha a ver com despertar sua consciência, forçar a pessoa a cair em si lhe fazendo gentilezas, como dar de comer e beber. Mas isso seria mais uma espécie de desejo de vingança, e o ato de dar de comer e beber uma forma de não violência, como a praticada por Gandhi e seus seguidores, que acabavam sendo violência de qualquer maneira porque, de algum modo, afetava a vida das pessoas de um modo nem sempre desejado por elas.
Por exemplo, entre seus atos que chamavam de "não violência" estavam ações como incentivar multidões a se deitarem sobre os trilhos ferroviários e assim paralisarem o país sem disparar um tiro. É importante entender que o conceito de não violência praticado por Gandhi e outros não é o mesmo que passividade, pois a não violência exige que seja ativa e provocativa.
Manifestantes podem se deitar numa rodovia e interromper seu tráfego alegando que não estão fazendo mal a ninguém, mas apenas chamando a atenção para suas reivindicações. Mas quem já perdeu voos, negócios e às vezes até um familiar numa ambulância presa no engarrafamento, sabe o quão violento e mortal pode ser um ato assim.
Então achei que minha ideia de fazer o bem com a intenção de fazer meu adversário se remoer de remorso não devia ser exatamente o sentido da passagem, pois todo o contexto aqui vinha falando de misericórdia e graça, e não de alguma vingança psicológica. Como poderia eu ter uma disposição assim só para depois fazer a consciência de meu opressor arder de arrependimento? Confesso que eu até sentia um certo prazer de fazer isso, porque meu coração é mau como qualquer outro.
Quando pesquiso sobre o assunto percebo que sua interpretação não tem sido fácil para muita gente. Diferentes autores dizem diferentes coisas a este respeito. William Macdonald comenta que "amontoar brasas de fogo sobre sua cabeça" significa deixá-lo envergonhado de sua hostilidade ao surpreendê-lo com um ato de bondade não convencional. Era o que eu também pensava.
F. B. Hole menciona o Salmo 140:9-10, dizendo apenas que devemos fazer isso, não numa perspectiva da Lei como ditava o Salmo, mas de uma perspectiva cristã. Eu particularmente acho que a passagem não se aplica, pois o Salmo diz: "Quanto à cabeça dos que me cercam, cubra-os a maldade dos seus lábios. Caiam sobre eles brasas vivas; sejam lançados no fogo, em covas profundas, para que se não tornem a levantar.".
Talvez algumas passagens do Antigo Testamento ajudem a entender melhor que ato de bondade seria esse. Em Levítico 16 vemos que Arão deveria tomar do incensário cheio de brasas e levá-lo, com um punhado de incenso, para dentro do véu do tabernáculo. Ali o incenso seria lançado sobre as brasas para a fumaça subir perante o Senhor e impedir que Arão fosse morto pela ousadia de entrar na presença do Senhor. A passagem é esta:
"Tomará também o incensário cheio de brasas de fogo do altar, de diante do Senhor, e os seus punhos cheios de incenso aromático moído, e o levará para dentro do véu. E porá o incenso sobre o fogo perante o Senhor, e a nuvem do incenso cobrirá o propiciatório, que está sobre o testemunho, para que não morra." (Lv 16:12-13).
Quando vamos a Isaías encontramos novamente brasas de fogo sendo usadas como meio de evitar um juízo ou castigo, que certamente viria sem a purificação operada pela brasa:
"Então disse eu: Ai de mim! Pois estou perdido; porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios; os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos. Porém um dos serafins voou para mim, trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; e com a brasa tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniquidade foi tirada, e expiado o teu pecado." (Is 6:5-7).
Voltando agora ao nosso trecho de Romanos 12, lemos que "fazendo isto", ou seja, retribuindo o mal com o bem, "amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem". Considerando que esse "fazendo isto" seja alimentar e matar a sede do inimigo, talvez (eu disse talvez) essas brasas de fogo tivessem um significado utilitário, e não fossem meros instrumentos de represália ou vingança para fazer a consciência do outro queimar de dor.
Os palitos de fósforo só foram inventados por volta de 1820, o que significa que antes disso, e até mesmo depois, ao menos até caixas de fósforo ficarem acessíveis e populares, o fogo era aceso com grande dificuldade. Ou se fazia fogo pelo atrito entre pedaços de madeira, ou pelas fagulhas produzidas entre pedras ou metais.
A pederneira de bolso era o meio mais sofisticado, pois já vinha com os dois elementos, pedra e metal, para criar o atrito, necessitando porém de algum material ou líquido inflamável aonde dirigir as fagulhas. Seu princípio de funcionamento é o mesmo do acionamento de um isqueiro, quando uma roda dentada produz atrito com outra superfície criando fagulhas que, neste caso, incendeiam o pavio ou o gás do reservatório nos modelos mais modernos. Curiosamente o isqueiro foi inventado três anos antes do palito de fósforo.
Mas isso não quer dizer que antes da invenção do fósforo e do isqueiro há dois séculos todo fogo precisava ser iniciado com as fagulhas da pederneira. Não, pois era possível armazenar fogo na forma de brasas misturadas com cinzas. Você já revirou uma fogueira apagada e descobriu sob as cinzas brasas ainda vivas que ficaram dormentes todo aquele tempo? Basta soprá-las para voltarem a produzir chamas.
Toda casa da antiguidade tinha um braseiro, geralmente um vaso de cerâmica ou metal para se guardar brasas. Sempre que alguém precisava iniciar um fogo para cozinhar era só retirar uma brasa do braseiro e soprá-la junto a um punhado de palha em meio à lenha para produzir fogo.
Pensando nisso, alguns comentaristas da Bíblia acreditam que esta seria a resposta para o ato de "amontoar brasas de fogo sobre a cabeça" do adversário, pois seria o equivalente a encher seu vaso (geralmente carregado sobre a cabeça) com as brasas essenciais caso essas faltassem em sua casa. Ou seja, o próprio ato de amontoar brasas era tão utilitário quanto dar comida ou água, outros elementos essenciais à vida cotidiana.
Enquanto não encontro uma explicação melhor para a passagem, esta foi a que melhor sentido fez para mim, substituindo aquela de incendiar a consciência de meu adversário. Mesmo que neste caso eu não saia da experiência com aquele gostinho de revanche e com um sorriso maroto nos lábios pensando na dificuldade que meu oponente terá de conviver com uma consciência atormentada.
Mario Persona é palestrante e consultor de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional (www.mariopersona.com.br). Não possui formação ou título eclesiástico e nem está ligado a alguma denominação religiosa, estando congregado desde 1981 somente ao Nome do Senhor Jesus. Esta mensagem originalmente não contém propaganda. Alguns sistemas de envio de email ou RSS costumam adicionar mensagens publicitárias que podem não expressar a opinião do autor.)